Em uma manhã de céu ensolarado de novembro daquele ano, Emiliano José, ou melhor, Pedro Luiz Vian, participava de uma reunião da Ação Popular (AP), organização que atuava em movimentos sociais, em um local atípico, na praia da Ribeira. Acompanhado de Vera e Zeca, também dirigentes da AP, ele estava articulando política e os rumos da atividade revolucionária. Naquele momento, ninguém sabia que Vera já estava marcada pela polícia e sua casa em São Caetano estava sendo vigiada. Ao finalizar a reunião, todos seguem para pegar um ônibus em direção ao Centro da cidade, mas algo os impede.
Mudança truculenta no roteiro
“Fui o primeiro a subir no ônibus ou a tentar subir, quando uma gigantesca mão me alcança na escada, de baixo para cima, me puxa e me tira do ônibus num movimento violento. Saio correndo, e aí se ouve uma gritaria de ‘pega ladrão, pega ladrão’. Pulei uma casa atrás da outra tentando escapar, mas um fusca, não propriamente com policiais, talvez com pessoas interessadas na prisão daquele assaltante, me alcança e logo depois percebo que eles vão me entregar para a Polícia Federal, que já estava por ali”, lembra Emiliano.
Assim como imaginava, Emiliano foi entregue à Polícia Federal, e naquele momento foi marcado o início de uma série de agressões e torturas. Depois de muitas “porradas”, ele foi recepcionado pelo Coronel Luiz Arthur de Carvalho, superintendente da organização. Mesmo sabendo exatamente o motivo de estar lá, Emiliano pergunta por que estava sendo preso. A dura resposta ele lembra até hoje: “Você vai saber por que está preso daqui a pouco, seu filho da puta, na tortura!”. Naquele mesmo ambiente, Emiliano se encontra com Benjamin Ferreira e Mara Vieira, ambos também faziam parte da Ação Popular, mas fingiram não se conhecer.
Como prometeu o Coronel Luiz Arthur, no final da tarde ele foi tirado do local e levado ao Quartel do Barbalho, local que ficou marcado como o cenário de muita violência e atos de tortura na Bahia. “Espero por um tempo em um cômodo, até que dois ou três soldados me vedam a vista com um esparadrapo grande e passam a me levar numa ladeira de paralelepípedos já tomando porrada para burro”.
O tanque de água e as barras de ferro
Com apenas uma calça jeans, Emiliano se encontra sangrando após ser agredido de diversas maneiras com barras de ferro e tijolos. Ao alcançar o topo da ladeira, ele se depara com um tanque de água que o aguarda para uma série de afogamentos.
“Eles me enfiavam, segurando pelos pés, de cabeça para baixo, me enfiavam no tanque e me deixavam lá até o momento do suplício danado, num sufoco, me tiravam […] Eu estava disposto a morrer sem falar nada, porque falar, significava entregar alguém, e esse era o objetivo deles”, conta.
Para efeitos documentais, Emiliano era “Pedro Luiz Vian”, um sujeito clandestino com um documento falso. Sem nenhuma informação sobre ele, os soldados seguem com xingamentos e muita violência para fazê-lo falar. Depois do tanque, ele foi levado ao gabinete do Major Hemetério Chaves Filho, que nomeia como um “torturador sádico”, onde encontrou o “pau de arara”. Logo após, veio o que para ele era muito pior, uma máquina de choques elétricos. Segundo Emiliano, cada pessoa vai sentir tortura de um modo, logo, não há como descrever em palavras o que ele sentia naquele momento.
Um misto de cores da tortura
Deitado e entregue em cima de uma maca, Emiliano, sem exageros, torcia para morrer. O seu único desejo era ao menos ficar desacordado, mas “era muito forte, nada disso acontecia, nem morria e nem desmaiava”.
Na cela do Barbalho, Teodomiro Romeiro do Santos, maior prisioneiro político do país e também seu companheiro de cadeia por anos a fio, tinha certeza que Emiliano estava morto na maca quando adentrou a cela. O seu corpo foi definido como uma profusão de cores: roxo, amarelo, azul, todas decorrentes das tantas agressões sofridas pelo caminho. No dia seguinte, tudo se repetiu, mas desta vez além do Major Hemetério, outro autor de tortura entra em cena, o Capitão Gildo Ribeiro, da Polícia Militar integrado ao Doi Codi.
“É uma figura tétrica, porque enquanto me torturava, ele ficava discutindo as preocupações rotineiras da casa dele. Enquanto acionava a maquininha do choque no pau de arara que eu estava, ele manifestava preocupação com a mulher que ia ser operada, ou falando das coisas do cotidiano”, rememora.
Esta matéria faz parte da série História de Resistência, lançada pelo Metro1 nesta semana, quando o golpe militar brasileiro completa 60 anos. Com sete reportagens, a produção retrata histórias de baianos que foram perseguidos ou tiveram suas vidas modificadas pela ditadura. Além de Emiliano, nomes como Carlinhos Marighella, Joviniano Neto, Mariluce Moura, José Carlos, Olival Freire e Diva Santana também fazem parte.
Pedido de perdão
Em uma pequena digressão na história, mais tarde, enquanto cumpria pena na Penitenciária Lemos Brito, Emiliano recebe o Capitão Gildo Ribeiro que vai até a cadeia lhe pedir perdão. “Eu disse que não iria perdoá-lo, que ele fosse tocar a vida dele e me provar que ele havia mudado”. Definida como uma história curiosa e dramática, Gildo chegou a contratar um advogado para conseguir ter uma conversa com Emiliano, também sem sucesso. Anos depois, com a sua morte, o filho de Gildo envia um e-mail para Emiliano pedindo perdão em nome de seu pai. Ele nunca respondeu.
No quartel, estavam presos Emiliano José, Teodomiro Romero dos Santos, Paulo Pontes da Silva, Wellington Freitas e Dirceu Régis. O agrupamento de prisioneiros políticos foi levado em 26 de janeiro de 1971, para a Penitenciária Lemos Brito, onde cumpriram pena. A Galeria F, local onde ficou preso durante quatro anos, abrigou dezenas de presos políticos durante quase uma década e posteriormente se tornou título de uma das suas obras que documentam o período: “Galeria F: Lembranças do Mar Cinzento”.
Ainda em 1971, entra um rádio pequeno na cela, e Emiliano vira aquele que ouvia o noticiário a cada 30 minutos e anotava todas as informações, fazendo um jornal em meia folha de papel ofício, com cerca de 20 notícias por dia. “Não era jornalista, mas diria que me tornei ali e diria que inaugurei o Twitter lá porque eu fazia notícias de duas, três linhas no máximo […] Por volta das 19h30, a gente passava aquele jornalzinho todo enroladinho de cela em cela e seguia todo mundo lia e no final, o último queimava”.
O passado nunca fica no passado
Em setembro de 1974, Emiliano José deixa o sistema prisional e encara a trajetória de se tornar jornalista. Ele passa a estudar comunicação na Universidade Federal de Comunicação, onde depois passou a lecionar. Emiliano hoje já possui mais de vinte obras publicadas e uma história na política baiana, como vereador e deputado. “Hoje, sobretudo, sou militante, como sempre, e escritor. Me dedico com muito afinco a escrever como forma de contar a trajetória de um sobrevivente, que é o meu caso, e ser fiel aqueles companheiros e companheiras que perderam a vida para a Ditadura”, afirma.
“É uma doce ilusão acreditar que seja possível esquecer o passado […] é preciso falar da história para que ele não se repita. Tivemos um ex-presidente [Jair Bolsonaro] que dizia ser admirador de um dos mais covardes torturadores da história, Carlos Alberto Brilhante Ustra. Esse pensamento de extrema direita é aquele que leva a Ditadura. Posso tentar entender o pensamento do presidente Lula, mas não concordo”, finaliza.